A trajetória de Ginzburg ilustra perfeitamente o percurso de muitos
historiadores que, desencantados com as debilidades do conceito de mentalidade,
migraram para outros campos. No seu
primeiro livro, I Benandanti (1966), entre nós conhecido como Os andarilhos do bem, Ginzburg
trabalhara com a noção de mentalidades, sendo mesmo um dos pioneiros no
estudo da feitiçaria, tema caro a este
campo de pesquisa. Mas já no pósescrito de 1972, embora o autor não tenha
efetuado modificações no corpo da obra, fez questão de marcar posição contra
aquele conceito, arrependendo-se de ter insistido na “ingênua contraposição
entre mentalidade coletiva e atitudes individuais”. Assumindo precocemente uma
crítica às mentalidades que só frutificaria muito depois, Ginzburg afirmou:
“Insistindo nos elementos comuns,
homogêneos, da mentalidade de um certo
período, somos inevitavelmente induzidos a negligenciar as divergências e os
contrastes entre as mentalidades das
várias classes, dos vários grupos sociais, mergulhando tudo numa
mentalidade coletiva indiferenciada e interclassista.
E, com efeito, foi o que ocorreu com a publicação, em 1976, de Il formaggio e i vermi, livro sobre as idéias de um moleiro friuliano condenado como herege
pela Inquisição papal no século XVI.
Foi nesta pesquisa que Ginzburg abandonou
o conceito de mentalidade e adotou o de
cultura popular, definindo-a como
“o conjunto de atitudes, crenças, códigos de comportamento próprios das classes subalternas num certo período
histórico...”. Partindo de uma definição aparentemente empírica, inspirada na antropologia cultural, Ginzburg acaba por formular uma visão original de cultura popular que não se confunde com “cultura imposta às classes populares” pelas classes dominantes (posição de Mandrou), nem exprime um triunfo de uma “cultura original e espontânea” das classes populares sobre os projetos aculturadores das elites letradas
A cultura popular, segundo Ginzburg, se define antes de tudo pela sua oposição à cultura letrada ou oficial das classes dominantes, o que confirma a preocupação do autor em recuperar o conflito de classes numa dimensão sociocultural globalizante.
Mas a cultura popular se define também, de outro lado, pelas relações que mantém com a cultura dominante, filtrada pelas classes subalternas de acordo com seus próprios valores e condições de vida. É a propósito desta dinâmica entre os níveis culturais popular e erudito — já que também a cultura letrada filtra à sua moda os elementos da cultura popular —, que Cario Ginzburg propõe o conceito de circularidade cultural.
E o historiador italiano foi além, ao propor abertamente o conceito de circularidade, noção somente
implícita em Bakhtin, que se preocupava mais com as oposições do que com as interpenetrações culturais entre as classes reconhecendo mesmo, como fez no seu artigo sobre o método indiciário que a história é não
uma ciência de tipo galileano (totalmente abstrata, dedutiva, quase matemática), mas uma ciência do particular. Ao
historiador cabe, com método e problemáticas teoricamente amplas, captar e decifrar os indícios, à semelhança do que faz o médico, o detetive, e outros “investigadores” que só atingem o geral
a partir de sinais particulares, valendo-se de erudição e mesmo de intuição
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